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Quando livros levam espécies ao risco de extinção

Quando livros levam espécies ao risco de extinção
Marcelo Szpilman
nov. 12 - 8 min de leitura
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Você já deve estar se perguntando o que livros têm a ver com a extinção de espécies. Pois bem, vou esclarecer essa correlação através de dois exemplos: morcegos e tubarões.

Começando pelos morcegos, em 1897, o irlandês Bram Stoker lançou seu romance de ficção gótica “Drácula”, onde o protagonista, o vampiro Conde Drácula, atacava e sugava o sangue de suas vítimas. Para criar o personagem, o autor buscou inspiração na história real de Vlad III (1431 - 1476), mais conhecido como Vlad Drakul (Vlad Drãculea, em romeno) ou Vlad, o Empalador __ sua fama de crueldade veio das brutais punições pela empalação por ele empregadas para fortalecer sua posição na luta contra os saxões da Transilvânia.

O livro foi adaptado inúmeras vezes para o teatro e para o cinema __ o primeiro filme, Nosferatu, é de 1922 __e, em algum momento, na cultura popular, o morcego passou a ser associado à figura do vampiro. A partir daí os morcegos adquiriram a mentirosa reputação de serem perigosos animais que sugam o sangue das pessoas e, em diversas regiões do mundo, a caça ao morcego, com fins de eliminação, passou a ser prática comum e muitas espécies foram levadas a entrar nas listas de espécies ameaçadas de extinção.

No entanto, é preciso apagar esse forte estigma que muitas pessoas têm do morcego como um vampiro. Das mais de 900 espécies de morcegos que vivem ao redor do Planeta, somente três se alimentam exclusivamente de sangue. E, ainda assim, essas três espécies não representam efetiva ameaça ao ser humano, pois suas vítimas são os animais selvagens e os animais domesticados criados em cativeiro.

Além disso, a imensa maioria dos morcegos exerce três funções fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas. A primeira é o controle de populações de insetos. Um único morcego-marrom é capaz de comer 600 insetos por hora. Para os agricultores, como os plantadores de milho, ter esses morcegos por perto é indispensável no controle de pragas.

A segunda função deriva da grande responsabilidade dos morcegos por dispersar as sementes das árvores e outras plantas. Numa única noite, mais de 500 sementes podem ser transportadas por um só morcego. E, por fim, os morcegos exercem papel essencial na polinização. Sem os morcegos, a reprodução de algumas plantas seria reduzida em pelo menos 50%, incluindo as mangas, goiabas, pêssegos e bananas.

O exemplo real da quase extinção do morcego da tequila, provocada simplesmente pela má fama iniciada com o livro Drácula, nos mostra como a interferência humana na cadeia alimentar dos ecossistemas naturais costuma gerar consequências danosas para nós mesmos.

Em 1988, o Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA constatou que um pequeno morcego de focinho longo (Leptonycteris nivalis), que voa de planta em planta no México e no Sudoeste dos EUA sugando néctar e polinizando cactos e agave-azul, estava bastante ameaçado pela caça motivada por mitos e a colocou na lista de espécies em perigo de extinção. O agave-azul (Agave tequiliana) é a espécie única de planta de onde se extrai a tequila, importante produto agro econômico do México. Ou seja, sem os morcegos polinizadores não haveria tequila. Por essa razão, trinta anos de esforços de conservação, com a participação dos fabricantes de tequila, conseguiu reconstituir uma população saudável de morcegos da tequila.

Passando para o tubarão, em 1974, o norte-americano Peter Benchley lançou o livro “Jaws” (mandíbulas, em inglês), contando a história de um grande tubarão-branco que atacava os banhistas de uma pequena cidade turística e a jornada de três homens para tentar eliminá-lo. O interesse em tubarões surgiu em 1971 quando Benchley conheceu as aventuras do pescador de tubarões Frank Mundus. A trama foi complementada tendo como referência um rumoroso caso de ataques sequenciais de tubarão-branco em uma praia da Austrália na década de 1960.

A ótima campanha de marketing, associada a um tema que gera enorme curiosidade, tornou o livro um grande sucesso de vendas e atraiu o interesse da mídia. Em 1975, o filme Jaws (Tubarão, no Brasil), com a direção de Steven Spielberg, foi lançado com enorme êxito __ até hoje continua sendo o filme de maior bilheteria de Hollywood __ e tornou-se um divisor de águas na história do cinema e da conservação dos tubarões.

O filme conseguiu, com grande efetividade, passar a distorcida ideia de que o tubarão-branco era um animal perverso e sanguinário que tinha o homem como alvo principal a ser mastigado. A partir daí a falsa imagem de “comedor de homens” lhe foi imputada, meio mundo começou a ter fobia de tubarão e os tubarões passaram a ser perseguidos e caçados de forma impiedosa.

Entretanto, também para os tubarões, é preciso apagar o forte estigma que muitas pessoas têm desses peixes como feras assassinas dos mares. Das mais de 400 espécies de tubarões que vivem nos oceanos do Planeta, somente três costumam atacar de forma não-provocada. Mas, ainda assim, mais de 90% de seus 100 ataques por ano no mundo ocorrem por simples erro de identificação __ em absoluto significa o tubarão se alimentando do ser humano.

A pesca cruel e insustentável dos tubarões, que vem ocorrendo nos últimos 40 anos, sem que a sociedade dê qualquer importância, simplesmente pela má fama iniciada com o livro Jaws, tem levado muitas espécies ao risco de extinção __ diversas populações já apresentam declínio de mais de 90%. Se nada for feito, algumas espécies poderão já ser extintas nas próximas décadas.

Atualmente, 46 espécies de tubarões (ou cações) ocorrentes no litoral brasileiro já estão com algum grau de ameaça de extinção. Representam mais de 50% das espécies que habitam as águas marinhas do Brasil. E sem esses guardiões dos mares, teremos um ambiente marinho doente, frágil e com desequilíbrios ambientais imprevisíveis.

Mais uma vez, como exemplo de que o homem costuma estar na ponta da cadeia de um ecossistema natural, muito motivados pelo livro Jaws, os moradores de uma cidade à beira de uma baía na Austrália resolveram, na década de 1970, eliminar as “feras assassinas” dessa baía de modo a torná-la mais segura para o homem. Caçaram boa parte dos tubarões que habitavam a região. Eles só não sabiam que aqueles tubarões se alimentavam também de polvo. A população de polvo passou a crescer sem controle e acabou com as lagostas daquela baía. Na sequência, o setor comercial pesqueiro local, que tinha na pesca da lagosta seu sustento, quebrou e centenas de pessoas perderam seus empregos.

Quer mais um exemplo? Na construção do Porto de Suape (Ipojuca, Pernambuco), que começou a operar em 1992, houve grande interferência e degradação ambiental, com aterramento de mangues e fechamento de bocas de rios, que provocaram o deslocamento de uma população de tubarões cabeça-chata, que ali vivia há milhões de anos sem provocar grandes problemas, para o litoral do Grande Recife e, consequentemente, o resultado foi o substancial aumento de ataques de tubarão a banhistas e surfistas nas praias de Boa Viagem, Piedade e Piva.

Todos os seres de um ecossistema estão conectados e a natureza sempre mantém seu equilíbrio. Porém, quando desequilibrado muitas vezes a volta ao equilíbrio da natureza pode não ser favorável ao ser humano, como espero ter conseguido mostrar. Assim, evitar a interferência nos ecossistemas naturais é vital se quisermos manter a harmonia e o equilíbrio da vida.


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